No final do ano passado, segundo o artigo, certa empresa foi condenada a pagar pesada indenização a um ex-empregado, pelo fato de não tê-lo registrado, nem tê-lo remunerado a contento. Até aí, nada de mais, concorde-se ou não com a decisão judicial. Há recurso para isso, à disposição da parte legitimamente interessada. O que causa perplexidade é que, no artigo, afirme-se que a condenação advém da utilização "ideológica" da lei, e não da sua "simples aplicação" - seja lá o que isso for. Levantam-se, então, vozes a destacar a imprevisibilidade das decisões judiciais (o maior veneno do capitalismo), enfatizando-se que "boa parte dos juízes brasileiros, principalmente os da área trabalhista, considera mais importante atender às necessidades sociais do que aplicar a lei à risca".
Criancinhas mal-criadas, esses tais capitalistas da Terra de Santa Cruz. O direito do trabalho não é coisa de comunistas: é um mecanismo engendrado pelo capitalismo, no seu auge. Decorre da necessidade historicamente desvelada de intervenção estatal na ordem econômica e no mercado de trabalho, identificada com as necessidades de manutenção do sistema, tendo por função, sobretudo, limitar o horizonte das incipientes lutas operárias e a extensão do conflito social subjacente ao modo de produção capitalista. O direito do trabalho não é, portanto, algo contrário ao capitalismo: é, antes, desde as suas origens, um mecanismo engendrado para a sua manutenção.
Não, isso não é nenhuma novidade. O Papa Leão XIII, na célebre encíclica Rerum Novarum (1891), proclamava - quando no Brasil a aristocracia fundiária ainda lamentava a abolição da escravatura, nunca levada totalmente a cabo - a necessidade de assegurar-se salário justo e outros direitos ao operariado, alertando que os ricos e os patrões não deveriam "tratar o operário como escravo, mas respeitar nele a dignidade do homem". Por quê? Leão não tolerava o socialismo e defendia, com fervor literalmente religioso, a propriedade privada. Chegou a advertir para o perigo que representaria um pobre pretender enriquecer. Não era, todavia, estúpido: pregava a união entre capital e trabalho, pois sabia que dar um mínimo para os trabalhadores era a única forma de manter a dinâmica capitalista.
Em síntese, o direito do trabalho, apontado pelos neofeudalistas brasileiros como um dos grandes bichos-papões da contemporaneidade, só deveria assustar criancinhas mal-criadas. É um mecanismo, inclusive ideológico, de manutenção do statu quo, forjado por capitalistas esclarecidos para que criancinhas ineptas, brincando de capitalismo, não viessem a expor o sistema a riscos.
Riscos! O capitalismo é, de fato, sensível à imprevisibilidade. É notório que as nossas criancinhas detestam correr riscos e adoram o conforto generoso do colo do pai-Estado sempre que suas travessuras as envolvem em problemas. A recente crise no setor especulativo, ainda que estrutural, cíclica e, por isso mesmo, previsível, é uma prova disso: correr riscos, só se, com certeza, o resultado for positivo. Riscos de criancinhas, com colo do pai à vista. Quando a pujança do capital especulativo ameaça transbordar e levar à bancarrota os especuladores, eles clamam desesperadamente pela intervenção do todo-poderoso pai-Leviatã, esquecendo que são liberais de carteirinha. Volúveis? Muito. Chegam, nessas ocasiões, a suscitar questões sociais para justificar a intervenção estatal, algo que, nas condições normais de temperatura e pressão, é abominado pelo mercado.
Mas, já que o capital não suporta a imprevisibilidade, por que mais de cinqüenta por cento dos empregadores, no Brasil, pequenos, médios ou grandes, não registram os seus empregados, como determina a lei? Por que não cumprem as obrigações contratuais? A alegação de que o custo disso é enorme é falaciosa: o Brasil pratica, há muito, dumping social. Nossa mão-de-obra é mundialmente reconhecida como barata, e fazemos com o "primeiro mundo" o que a China faz conosco, quando o assunto é o custo da mão-de-obra devido às leis sociais. O Código Penal define como criminosa a falta de anotação do contrato na carteira de trabalho do empregado. Essa conduta frauda não apenas direitos individuais do trabalhador, mas a sociedade: a Previdência Social, o FGTS, você e o próprio capitalismo. Claro, criancinhas não prevêem as conseqüências dos seus atos... Mas por que querem ser capitalistas, então?
Decisões ideologizadas não são, de per si, decisões boas ou ruins, são o que são: decisões. Em nada do que fazemos há absoluta objetividade, pois não somos objetos; somos sujeitos. O juiz deve ser imparcial, não desprovido de sentimentos. Sentença, do latim sententia, sentiendo, gerúndio do verbo sentire: nela o juiz declara o que sente. Não concordo, particularmente, com alguns entendimentos do juiz
Capitalistas de plantão deveriam aplaudir atos como o do juiz
Como diria um bom capitalista à moda antiga: quem não tiver competência, que não se estabeleça! Quem não consegue empreender sem fraudar, deixe de empreender, vire assalariado e torça para que o seu patrão, ao menos, anote o contrato na sua carteira de trabalho. A mão invisível e sábia do mercado está aí para expurgar os ineptos. Quem tiver competência não precisa fazer caridade: basta que pague o que deve, e cumpra as suas obrigações. Que faça, em resumo, a sua parte; juízes como